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Dinheiro em construção

Fonte: Revista Mercado em Foco – ACIL – Por Ranulfo Pedreiro

Quando a ACIL foi fundada, em 1937, muitas ruas de Londrina viviam situações extremas. Quando chovia, a lama formava-se pegajosa e escorregadia, derrubando os incautos. Em tempos de seca, a poeira vermelha invadia balcões e vitrines, exigindo constante faxina. A falta de asfalto e calçamento, porém, nem de longe representou o principal desafio do empresariado local nos últimos 80 anos.

De lá para cá, difícil mesmo foi sobreviver à instabilidade econômica traduzida em nove mudanças de moeda. Isso mesmo, o dinheiro brasileiro mudou nove vezes em oito décadas! Para complicar, só nos últimos 40 anos o país passou por nove recessões, contando a atual.

Em 1937, o dinheiro vigente no Brasil era o Mil-Réis, uma continuidade do antigo Real estabelecido desde o início da colonização. Desde então, passamos pelo Cruzeiro (1942), Cruzeiro Novo (1967), Cruzeiro (1970), Cruzado (1986), Cruzado Novo (1989), Cruzeiro (1990), Cruzeiro Real (1993) e Real (1994).

Segundo o jornal “O Globo”, enfrentamos recessões nos governos Figueiredo (1981-1983), Sarney (1987-1988), Collor (1989-1992), Fernando Henrique Cardoso (1995, 1998-1999 e 2001), Lula (2003 e 2008-2009) e Dilma/Temer (de 2014 até hoje).

Essa montanha russa monetária provocou aberrações econômicas. No livro “Saga brasileira – a longa luta de um povo por sua moeda” (2011), a jornalista Míriam Leitão cita, no auge da hiperinflação dos anos 80, um fogão de brinquedo que chegou a custar mais caro do que um fogão de verdade.

A obra traz outro dado impressionante. Cálculos do professor Salomão Quadros, da Fundação Getúlio Vargas, apontam uma inflação – com base no IGP/DI – entre julho de 1964 e julho de 1994 de 1.302.442.989.947.180%. Isso mesmo: mais de 1 quatrilhão por cento!

Números tão assustadores configuram a economia nacional como um pântano onde é raro o terreno firme. A comparação de preços, por exemplo, revela dados curiosos, verdadeiras representações de época, mas difíceis de quantificar na atualidade.

Um Fusca, em 1959, custava módicos Cr$ 496.000,00. Quando o homem pisou na Lua, em 1969, a revista “O Cruzeiro” saía por NCr$ 1,80. Pouco depois, em 1975, a revista “Veja” era vendida a Cr$ 7. Já em maio de 1976, um exemplar da “IstoÉ” saía por Cr$ 15.

Saco de dinheiro

Se o leitor voltasse no tempo até a era da discoteca, pagaria salgados Cr$ 50 por um drink Primavera na badalada Hippopotamus, famosa boate de Ricardo Amaral, no Rio de Janeiro, em 1976. A cantora Beth Carvalho fez sucesso no ano seguinte com “Saco de feijão”, samba de Francisco Santana: “De que me serve um saco cheio de dinheiro/ pra comprar um quilo de feijão?”. Era a mais pura realidade. Já em 1994, no plano Real, 1 quilo de filé mignon custava R$ 6,80.

Uma forma mais concreta de perceber como a moeda mudou de valor ao longo dos anos pode ser medida pelo salário mínimo, que em julho de 1940 custava 204 mil réis. Uma década depois, em 1954, o valor passou para Cr$ 2.400,00. Em janeiro de 1963, alcançou Cr$ 21.000,00. Novembro de 1985: Cr$ 600.000,00. Para chegar em março de 1986 em CZ$ 804,00.

Boa parte dessa confusão explica-se pelo corte de zeros, uma espécie de maquiagem para a desvalorização. Em outubro de 1942, o Cruzeiro estreou valendo 1 mil-réis. Com um corte de três zeros em fevereiro de 1967, o Cruzeiro Novo valia 1 mil cruzeiros. Em maio de 1970, houve apenas uma troca de nomes: Cruzeiro Novo voltou a ser Cruzeiro.

Até fevereiro de 1986, quando outros três zeros foram cortados e o Cruzado substituiu 1 mil cruzeiros. A inflação foi tamanha que, já em 1989, houve novo corte de três zeros, com o Cruzado Novo valendo 1 mil cruzados.

Em 1990, outra mudança de nome: o Cruzado Novo passou a ser Cruzeiro. Depois, em agosto de 1993, o Cruzeiro Real chegou valendo 1 mil cruzeiros. A transformação mais importante se deu em julho de 1994: calçado pelo dólar, o Real surgiu valendo exatos 2.750,00 cruzeiros reais. Ufa!

Foram tantas as mudanças que, frequentemente, a memória sente-se traída. Quem sobreviveu às intempéries costuma confundir as moedas. “A gente vai esquecendo… Eu comecei a trabalhar com carros em 1985. Praticamente há 32 anos. Qual era a moeda? Era Cruzeiro? Até a gente se perde”, comenta o empresário Oscar Mistafa, proprietário da 4 Rodas Veículos.

Ele começou na profissão enfrentando o primeiro Plano Cruzado (1986), um congelamento forçado de preços que tornou o carro novo um artigo raro. Havia filas imensas para comprar. Ironicamente, o carro usado ficou mais caro. “As pessoas vendiam um carro com dois anos de uso para comprar um novo. Às vezes, o seminovo era mais caro do que o carro novo. A pessoa fazia o pedido na concessionária, comprava o novo e já anunciava (para vender) mais caro antes de pegar o automóvel”, recorda.

Também nesse período, em meados dos anos 80, o carro popular com motor 1.0 foi lançado custando, como preço de referência, 7 mil dólares. Hoje, a referência dos modelos 1.0 é de 10 mil dólares.

Vendedor de carros desde 1976, Takati Kato revela como as empresas perderam capital de giro na hiperinflação do governo Sarney. “Lembro de um empresário dizendo: ‘Daqui a seis meses teremos que fechar a empresa’. Isso ocorria porque o capital de giro estava acabando. A inflação era de 97%, mas o empresário não conseguia corrigir os 97% e acabava tirando do bolso”, explica o proprietário da Kato Veículos.

Há 69 anos em funcionamento, o Bazar Ajimura está aberto desde que a lama tomava conta da Rua Sergipe. E está no mesmo endereço desde 1957. Os fregueses ainda são recebidos por dona Tokiko Ajimura, prestes a completar 100 anos de vida. Seu filho, Tadamasa Ajimura, de 77 anos, está desde os sete atrás dos balcões da loja, feitos em madeira de lei.

A família veio do Estado de São Paulo para trocar a lida na lavoura pelo comércio de aviamentos e rendas. Com o tempo, a variedade de produtos aumentou. A casa tornou-se referência do comércio de rua e hoje atrai gerações de fregueses. Ou seja, há netos frequentando a mesma loja onde seus avós compravam.

Três aumentos por dia

A experiência de seu Tadamasa aponta o governo Sarney como um dos períodos econômicos mais conturbados. Para acompanhar a inflação, era preciso aumentar o preço dos produtos até três vezes no mesmo dia. “Fomos levando chumbo. Quando acabou o congelamento de preços, sabe quanto a mercadoria tinha subido? 450%”, comenta o empresário.

Para ele, os bons tempos dos anos 50 e 60 eram prósperos para quem se dedicava ao trabalho. “Não precisava ter conhecimento, mas com força de vontade ganhava-se dinheiro. Meu pai viajava todo mês para São Paulo, trazia produtos e revendia aqui. Depois ele se cansou de ir para lá e começaram a vir os viajantes, representantes de atacadistas”, acentua.

Entender o mercado atual tornou-se imprescindível: “A pessoa tem que conhecer, se não conhecer, investe uma grana violenta e em meio ano está fechando”, alerta.

Há quem enxergue na crise atual a pior delas. Fundador das lojas Móveis Brasília, em 1967, o empresário Francisco Ontivero, de 83 anos, considera o momento preocupante. “Convivemos com esses planos desde 1968, pelo menos, e vimos muitas empresas fechando. Não é fácil para as que ficaram, principalmente as médias empresas, que têm as mesmas obrigações das grandes e não têm os incentivos das pequenas”, ressalta.

Nem os cortes dos zeros, nem os congelamentos, nem o Plano Collor foram tão difíceis, explica seu Francisco. “Esse é o pior momento de todos, pegou a indústria, o comércio, os pequenos, os grandes, o trabalhador. Antes não tinha a concorrência que tem hoje, é preciso estar muito atento, tem que conhecer o mercado”, ressalta.

Com a experiência de cinco décadas de mares revoltosos e pouco vento a favor, seu Francisco prefere se precaver contra lufadas de otimismo com uma administração cautelosa, enxuta e distante dos juros bancários.

Oito décadas se passaram e a moeda nacional ainda busca a sonhada estabilidade. Mas esse contínuo processo de construção financeira, sublinha Míriam Leitão em seu livro, representa um processo de autoconhecimento. Na saga por uma moeda forte, o Brasil se redescobre confrontando os próprios erros.


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