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O saudável hábito de variar

Por Celso Felizardo – Revista Mercado em Foco – ACIL

 

Todo ambiente democrático é sustentado por pilares fundamentais à sua existência. Um dos mais importantes é a alternância de poder, essencial para a legitimidade de governos e instituições. Mudanças de comando promovem transformação social, maior representatividade dos diversos setores da sociedade. Além disso, serve como um redutor de danos quando se pensa em corrupção, excesso de poder, tendências à autocracia e interesses pessoais.

De acordo com Jéssica Moura, mestre em História Social pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), a alternância de poder deve ser compreendida essencialmente no campo do conceito da democracia, que remete a períodos históricos como o da Grécia Antiga, exercida na época como democracia direta, e ao final do século 18 quando a democracia representativa começa a tomar suas bases.

“Na nossa democracia conhecida como representativa ou indireta, o povo tem como papel a escolha de pessoas que os representam no poder. Com isso, pode assim alternar este poder para que seja garantido que os direitos dos cidadãos sejam atendidos”, explica. Ela lembra que princípios da democracia, como o de alternância, garantiram avanços. “Desde o século 18 e 19 a humanidade veio conquistando direitos que deram ao homem a liberdade, com o fim da escravidão e da violência, como tantas outras conquistas, é caso da liberdade de expressão, das quais somente foram possíveis quando se destituíram governos dos quais justamente a alternância de poder não era parte da escolha popular”, esclarece.

Para Elve Cenci, cientista político e professor da UEL, o revezamento dos governantes é fundamental em uma sociedade plural. “Não temos uma sociedade única, uma sociedade igual. Se pensarmos nas origens da democracia, mesmo com limitações de participação na política da Grécia Clássica, não havia uma igualdade. Entre os líderes havia uma diversidade de categorias. Na democracia, sobretudo no nosso tempo, nas chamadas sociedades pós-convencionais, nós vivemos em sociedades complexas e as pessoas têm interesses distintos. Por isso é fundamental a alternância”, considera.

Cenci faz um recorte de 30 anos de período democrático no Brasil após a reabertura. Apesar da alternância de presidentes, o cientista político acredita que o sistema ainda seja bastante falho. “Quando você pega a eleição do Collor, depois os oito anos do PSDB, com a criação da reeleição, em seguida as quatro vitórias do PT para, enfim, culminar na vitória de Jair Bolsonaro, agora, vemos uma escolha muita centrada na figura da pessoa. Em democracias mais sólidas, as pessoas olham muito mais para os partidos e para as propostas estruturadas do que para a pessoa dos candidatos”, compara.

Um ponto defendido pelo professor como fundamental para que a alternância de poder funcione em estado pleno é o estímulo da formação de lideranças dentro dos partidos e das instituições. “Muitas vezes vemos na política e em diretorias de associações e afins pessoas que se perpetuam e que só fazem a transferência desse capital político para familiares, geralmente filhos. Não há um interesse de se formar novas lideranças porque ela pode sepultar as já estabelecidas no futuro. Este é um ponto a ser superado para fortalecer nossa democracia, com uma alternância verdadeira”, critica.

O processo de reeleição, da forma como ocorre no Brasil, também é visto com reservas pelo cientista político. “Em tese, a reeleição permitiria a um determinado governo passar pelo crivo da avaliação dos eleitores e ganhar mais quatro anos para levar adiante projetos que nem sempre são realizados só em quatro anos. Você tem a possibilidade de oito anos, que dá uma certa continuidade a políticas, a projetos que foram aprovados pela população. Mas o que temos observado é que, em muitos casos, o segundo governo tende a não ser tão bom quanto ao primeiro”, observa. “Em segundo lugar, se os partidos fossem bem estruturados, se os partidos tivessem consistência além de nomes, você não precisaria de reeleição para manter determinadas propostas ou políticas, bastaria substituir o nome e manter o partido no poder. Não é isso que acontece, aí vira uma busca por poder, por manutenção no poder”, acrescenta.

Uma alternativa viável, segundo ele, é o recall, plebiscito popular de confirmação do voto, previstos em outros países como os Estados Unidos. “Eu acho que para fortalecer os partidos, nós teríamos que acabar com a reeleição. Nós cobraríamos dos partidos que eles formassem lideranças. A ideia do recall é assim, seria uma forma de a cada dois anos avaliar o desempenho dos governantes e parlamentares. Em um mandato de quatro anos é comum que ele faça o que bem entenda em três anos e, no último, se volte para os eleitores. Isso poderia ser combatido se a cada dois anos houvesse um processo de confirmação dos parlamentares”, defende.

Cenci, no entanto, expõe um efeito colateral do recall. “Por outro lado, no nosso sistema, nós poderíamos ter um processo do suplente tentar puxar o tapete de quem tivesse mandato. Viraria uma situação insustentável. Mas mesmo assim eu defendo essa ideia [do recall]. Poderia ser uma experiência muito produtiva de avaliação do exercício parlamentar. Cobrança mais permanente, mais efetiva”.

Quando ditaduras se perpetuam no poder, as consequências podem ser terríveis. Por isso, promover os conceitos democráticos é tão importante, afirma Jéssica. “Analisar a importância da alternância de poder deveria nos ensinar muito mais do que apenas fomentar discussões rasas sobre partidos políticos e antagonismos ideológicos. Ela poderia nos ensinar exemplos de países como a Síria, que vivendo em uma caótica situação de guerra há quase oito anos, é comandada pela mesma família há mais de 40 anos. Ou ainda países africanos como Sudão ou Chade da qual uma ditadura militar foi instaurada alguns anos após a descolonização, e que duram ainda hoje, tornando seus territórios lugares de opressão e omissão a direitos fundamentais”, ilustra.

Nas instituições, o resultado da permanência prolongada de um mesmo líder também traz prejuízos, aponta Cenci. “Quando se tem uma continuidade de longo prazo, de uma pessoa ou de um mesmo grupo, há um esgotamento de iniciativas, de ideias, de projetos, e até uma certa acomodação. A alternância tem o lado positivo que é trazer ideias novas, de oxigenar, de também revelar novas lideranças”, analisa.


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