O ponto mais alto do sertão

Estátua do Mercúrio, no topo da antiga sede, anunciava as culminâncias de Londrina

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Fonte: Revista Mercado em Foco/Julho

Por Paulo Briguet

Da primeira sede da ACIL, construída por Mário Romagnolli, restam algumas fotos, muitas lembranças, uma placa de mármore e a estátua de bronze do Mercúrio.

A sede foi inaugurada em 31 de janeiro de 1942, e anunciada aos quatro ventos como “o prédio mais alto e mais bonito do sertão paranaense”. Não era ufanismo, era a realidade. A estátua do Mercúrio, com seu dedo erguido para o céu, parecia anunciar que as muitas outras culminâncias que viriam.

Inicialmente a obra foi orçada em 270 contos de réis. Parte do dinheiro foi doada pelos primeiros diretores da entidade; o restante foi conseguido por meio de empréstimos. O terreno, no valor de 70 contos de réis, foi doado pela Companhia de Terras Norte do Paraná.

No dia da inauguração, serviram-se muitas garrafas de um bom vinho português. Até o interventor Manoel Ribas, homem-forte da ditadura Vargas no Paraná, em geral de poucas palavras, falou pelos cotovelos durante a festa. Hoje Manoel Ribas dá nome a uma alameda próxima à ACIL. Infelizmente, os lustres de cristal da Boêmia, encomendados para a festa de inauguração, só deram o ar da graça meses depois.

Durante a Segunda Guerra, a estátua do Mercúrio correu o risco de virar bala de canhão. Um militar apareceu na cidade e queria confiscá-la para o esforço de guerra. Como se sabe, a ideia não prosperou.

Nos anos 50 e 60, o prédio da Associação Comercial recebeu visitantes ilustres, entre eles o presidente Juscelino Kubitschek (1963), então senador. Mas o tempo passou, a sede ficou pequena e acabou sendo demolida em 1973. Hoje a ACIL funciona em dois andares do Edifício Palácio do Comércio, construído no mesmo local e inaugurado em 1976.

Fotos antigas dizem muita coisa. Às vezes passo um tempo olhando para algumas imagens da construção da ACIL. Talvez a foto que mais impressione seja a do fundador David Dequech reunido com os operários que faziam o prédio. Todos os personagens daquela cena fixam a lente da câmera e parecem orgulhar-se da parede de tijolos à vista que acabaram de erguer. A estátua do Mercúrio, símbolo do comércio, ainda não estava na Rua Minas Gerais. Uma curiosidade: a foto mostra 38 homens adultos; e é exatamente esse o número atual de colaboradores da ACIL. A entidade continua construindo a história. E o Mercúrio continua apontando para o alto.

O poeta que construiu o prédio da ACIL

Por José Antonio Pedriali

A construção da sede da Associação Comercial foi a primeira grande obra empreitada por Mário Rogmanolli. Ele oferecera o preço mais baixo – 42 contos de réis –, chamando a atenção e atraindo a ira de Angelo Ferraris, que apresentara o mais alto – 63 contos – e mandou avisar: o puniria com as próprias mãos – e que mãos!

O aviso ficou sem resposta, foi reiterado, e novamente Mário o ignorou.

O edifício tornou-se uma atração turística quando passou a exibir, para deslumbramento da população, o terceiro andar. Tornou-se, assim, o símbolo da realização do impossível no meio do sertão e a sinalização de que estava concluída a fase da precariedade circunstancial das vidas dos moradores do povoado que adquiria rapidamente as feições de uma cidade. Uma nova e definitiva fase estava iniciando, a da prosperidade a que os sonhos de homens indômitos e mulheres tenazes, alimentados pelo trabalho, haviam prometido conduzir.

O trecho acima foi extraído do livro “O poeta da rebeldia” (Atrito Art Editorial, 2011), romance biográfico sobre Mário José Romagnolli, meu avô materno. Sou o autor do livro, e assumo: pratico com despudor nepotismo (favorecimento do neto ou sobrinho) invertido em relação a ele, que aprendi a admirar ainda na infância.

Feitos os esclarecimentos, vou ao homem: o mineiro Romagnolli chegou a Londrina em 1938 em busca, como todos os que vieram para estas bandas naqueles tempos indóceis, de melhoria de vida. E, no caso dele, também para fugir da perseguição que a polícia getulista lhe fazia, pois era membro da Ação Integralista Brasileira, adversária ferrenha do ditador. Seu pai, o italiano Pietro Romagnolli, construtor exímio e meticuloso – ergueu várias igrejas em estilo barroco em Minas –, talento que Mario herdou.

E pôs à prova ao aceitar a construção do edifício pioneiro da Associação Comercial de Londrina. Era, como descrito no início deste artigo, o edifício mais arrojado da nascente Londrina. Sua vitória na concorrência despertou a ira de Angelo Ferraris, o primeiro construtor (seria chamado hoje de empreiteiro) a se estabelecer em Londrina, onde chegou em 1934. Grandalhão, forte como um touro e briguento – este era Ferraris, que não poderia ser de outra forma, pois nascera em Bergamo, e quem nasce em Bergamo ainda hoje é famoso pela disposição para o trabalho e índole nada pacífica.

Ferraris passava com insistência diante da obra com sua motocicleta e detinha-se por longo tempo num bar próximo. Enquanto bebia – e como bebia! –, ameaçava despejar sua força descomunal sobre o corpo esguio do concorrente.

As ameaças incomodaram o velho Pietro, que, numa ação temerária, destinada a amedrontar o rival do filho, o procurou no bar:

– O senhor não conseguirá bater em meu filho – alertou-o Pietro. – Ninguém até hoje conseguiu.

Ferraris riu. Estava diante de um homem franzino, carcomido pelo tempo, careca, orelhudo, de olhos fundos e porte levemente encurvado. E, como o filho, com um nariz de ave de rapina.

– Macchè, farabuto!. Il suo figlio è una galinotta! O quê, pilantra! O seu filho é uma franguinha! – respondeu o italiano.

O alerta causou efeito contrário ao pretendido por Pietro, pois em vez de desencorajar, estimulou o desafeto do filho a provocá-lo com mais alarde. A partir daquele encontro, Ferraris aumentou a frequência às imediações da obra e a insistência da sineta da moto.

Romagnolli penou ao aportar em Londrina com a esposa Yolanda (que raptou dos pais) e família numerosa. Instalou-se numa casa na atual Avenida Rio de Janeiro e saiu à cata de serviço. Não achava nada que valesse a pena, pois a matéria-prima das construções era a madeira, e sua especialidade era a alvenaria. Foi fazendo um trabalhinho aqui, outro ali, e caçando para reforçar a alimentação da família, até que surgiu a grande obra: a sede da Associação Comercial. Contratou 40 homens e enfrentou o desafio, que culminaria com a instalação da estátua de Mercúrio no topo do prédio, um esforço hercúleo. O trabalho se aproximava do fim, e:

(…) o impensável aconteceu. Era inverno. O céu adquiriu bruscamente uma tonalidade cinza escuro, o ar ficou rarefeito e a temperatura despencou.

Mário dispensou os funcionários no início da tarde.

– Vão para casa, mas antes consigam madeira e latas de 20 litros. Produzam brasa em seus fogões, muita brasa, encham as latas com elas e as espalhem pelos cômodos. Vai nevar!

Como poderia prever com tanta convicção uma aberração da natureza numa região de clima tropical em que fazia frio, sim, geava também, mas nevar, quando havia nevado?, espantaram-se os funcionários.

Mário reagiu com segurança:

– É isso o que acontece na Itália quando está na iminência de nevar. É o que diz meu pai, e ele é sábio, porque, além de velho, é italiano.

Voltou para casa com um carregamento de madeira transportado por uma carroça e mandou chamar os filhos na escola. Iolanda providenciou a brasa.

O frio calou galinhas e os galos, que naquela tarde suspenderam o anúncio regular das horas. No fim do dia, pequenos flocos de neve começaram a brotar do céu de chumbo. Meia hora depois, a cidade, na qual predominava o vermelho dos telhados e do solo fértil, tornara-se branca como as dos cartões postais enviados pelos parentes de Pietro residentes do outro lado do mundo.

Nevou toda a noite.

A construção da sede da Associação Comercial foi a primeira de muitas grandes obras de Romagnolli, que diversificou seus negócios ao abrir uma fábrica de artefatos de cimento em frente ao cemitério municipal, atual São Pedro. A fábrica deu origem à primeira marmoraria de Londrina – São Pedro e depois Roma, hoje extinta. Foi vereador na primeira e segunda legislaturas após o fim do Estado Novo, no final da década de 1940, disputou a Prefeitura em 1955, sendo derrotado por Antônio Fernandes Sobrinho, e, no meio do caminho, revelou-se um poeta de mão cheia, compondo – e fazendo da sátira política seu carro-chefe -–até o final da vida. Morreu em 1991, aos 85 anos, deixando cerca de cinco mil poesias.

Reproduzo uma para satisfazer a curiosidade do leitor. Trata-se de uma crítica à gestão do prefeito Hugo Cabral (1947-51):

 

Não soube, senhor prefeito

Do desastre que seu deu?

No buraco de uma rua

Um pobre homem morreu

 

O homem era bem pobre

Lutava com sol, com chuva

Deixa filhos e filhas

E uma pobre viúva

Tudo isso pode se dar

O destino é sempre certo

Não justifica porém

É deixar o buraco aberto

Se outra morte acontecer

Por falta de sua atenção

Saberei que existe uma pedra

No lugar do seu coração

Ah, sim, o Ferraris: fez obras portentosas (a catedral em estilo neogótico, por exemplo) e tornou-se um dos amigos mais dedicados de Romagnolli. E vice-versa.

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